quinta-feira, 21 de julho de 2016

WILLIAM BOYD


Hoje na Sábado escrevo sobre Doce Carícia, de William Boyd (n. 1952). Glosando Flaubert com inteira propriedade, o autor pode afirmar: Amory Clay sou eu. Tudo começou com uma fotografia encontrada por acaso. Aquela que vemos no frontispício, uma mulher a chapinhar na água em 1928. A partir daí, Boyd construiu a intriga que dá consistência ao seu livro mais recente. De certo modo, repete o que fez com Nat Tate: An American Artist 1928-1960, biografia imaginária de um pintor abstracto. Em 1998, quando foi publicado, o livro desconcertou o milieu artístico anglo-americano. Desta vez, apesar do virtuosismo, ninguém tem dúvidas sobre o carácter ficcional da história. Criação do autor, Amory Clay, nascida em 1908, impôs-se como fotógrafa num mundo dominado por homens. Boyd criou o equivalente de Martha Gellhorn, famosa correspondente de guerra nascida no mesmo ano que a sua personagem. É impossível não sentir, no backstage, a presença de Martha Gellhorn, uma das mais notáveis e aclamadas fotógrafas do século XX. Boyd não se esqueceu dela, e de mais uma dúzia, nos agradecimentos. As fotos que intercalam a narrativa não foram creditadas, são imagens avulsas cuja função é ilustrar as memórias de Amory, uma mulher que atravessou duas guerras mundiais e viu o pai (um escritor obscuro) morrer louco. Doce Carícia é uma revisão do século: o desmoronar do mundo anterior à Primeira Grande Guerra, os intrépidos anos 1920 (os bas-fond de Berlim e Londres), os equívocos dos thirties, a Segunda Grande Guerra observada a partir da França ocupada, a hegemonia americana, a Guerra do Vietname, os sobressaltos de uma repórter na frente de combate. Extractos do diário de Amory introduzem os recuos do tempo. Boyd faz um patchwork minucioso: a informação flui com naturalidade, mas o essencial é Amory. Recorrente, o sexo é descrito com as palavras adequadas, sem nunca cair na vulgaridade ou beliscar a elegância da prosa, como demonstrado na cena em que Amory perde a virgindade: para facilitar o acto, o parceiro usa banha de porco como lubrificante. Oriunda de uma família com pretensões aristocráticas, Amory está à-vontade em todo o tipo de meio, seja o lumpemproletariado ou as classes altas. Deveras interessante. Quatro estrelas.

Escrevo ainda sobre A Rota da Porcelana, de Edmund de Waal (n. 1964). O que define um autor de excepção? Quando de Waal publicou o primeiro livro, centrado nos Ephrussi, uma família de banqueiros judeus, a questão colocou-se. E quem leu A Lebre de Olhos Cor de Âmbar ficou na expectativa de nova obra. Ela chegou agora. A Rota da Porcelana mexe directamente com a profissão do autor, oleiro e professor de cerâmica há duas décadas. Se o livro anterior era sobre os netsuke (mini-esculturas de madeira ou marfim), este é sobre o «ouro branco». A partir da história da porcelana, de Waal escreveu um livro difícil de classificar. Podemos lê-lo como monografia biográfica de Tschirnhaus, o matemático; Böttger, o alquimista que introduziu a porcelana na Europa; Espinoza e Leibniz, os grandes racionalistas do século XVII. Mas também como diário de viagem: de Jingdezhen a Londres, com passagens por Versalhes, Dresden, Plymouth, a Etrúria, a Cornualha e outras partes. Ainda como romance histórico. Uma obra perfeita sob qualquer ângulo, porque de Waal alia erudição com humor, sem nunca descurar uma escrita de indiscutível virtuosismo. Cinco estrelas. Publicou a Sextante.