quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ANNE FRANK & BERNARDO CARVALHO


Hoje na Sábado escrevo sobre O Diário de Anne Frank. Li-o pela primeira vez na tradução de Ilse Losa. A actual, da responsabilidade de Elsa T. S. Vieira, disponível há cerca de dez anos, terá sido feita a partir de uma das edições de língua inglesa: The Diary of a Young Girl: the definitive edition. Escrito em neerlandês e publicado pela primeira vez em 1947, numa versão curta, o diário tornou-se mundialmente conhecido em 1952, ano em que foi vertido para inglês. Contudo, seria preciso esperar por 1980, ano da morte de Otto Frank, o pai de Anne, para que o texto fosse editado na íntegra, sem excluir «passagens relacionadas com a sexualidade» da filha. Pelo que hoje se sabe, não está garantido que tenham sido aproveitados todos os trechos sobre sexo, em particular os mais “francos”. De qualquer modo, após avaliação do manuscrito original (a sua veracidade continua a ser posta em causa pelos negacionistas do Holocausto) por peritos do Instituto Holandês de Documentação de Guerra, foi publicada em 1986 a versão dita “definitiva”. Porém, em 1998, a descoberta de «cinco páginas antes desconhecidas», levou a nova alteração do corpus. O prefácio do presente volume, não assinado nem datado, remete os leitores interessados para a Edição Crítica revista. Mas qual delas: a de 1986, a de 1999, outra? O texto começa no dia 12 de Junho de 1942 e termina a 1 de Agosto de 1944. A primeira entrada coincide com o 13.º aniversário de Anne, pois o diário propriamente dito (o caderno de folhas lisas) foi um presente. Nascida em Frankfurt no seio de uma família judaica, Anne Frank (1929-1945) tinha acabado de completar 4 anos quando acompanhou os pais e a irmã na fuga para Amesterdão. Mas em Maio de 1940, com a ocupação da Holanda pela Alemanha, tudo mudou. A 6 de Julho de 1942 os Franks refugiam-se no anexo secreto do número 267 de Prinsengracht. Com eles estão mais quatro pessoas: três membros da família Van Pels e o dentista Fritz Pfeffer (citados no livro por pseudónimos). Até que, em 4 de Agosto de 1944, uma denúncia leva à prisão do grupo. Anne e a irmã acabariam por morrer de tifo no campo de Bergen-Belsen. Dos oito ocupantes do anexo, Otto Frank, prisioneiro em Auschwitz, foi o único sobrevivente. Seria pleonástico avaliar O Diário de Anne Frank como uma obra literária tout court. Perante a natureza do texto, toda a exegese seria fútil. Quatro estrelas.

Escrevo ainda sobre Reprodução, o romance mais recente de Bernardo Carvalho (n. 1960), um dos mais estimulantes autores brasileiros contemporâneos. Dividido em três partes, o monólogo tem momentos deveras vituosos. A “desconstrução” da identidade gay (o autor é homossexual assumido) é um exemplo: «Gay é que nem praga na horta de Deus. Gay não reproduz. Ou melhor: reproduz na horizontal, não na vertical. […] Vai se espalhando como erva daninha. Por isso é que não pode deixar. E nisso estou com o Vaticano, não pode deixar.» Seria apropriado citar Kafka, porque o narrador, um estudante de chinês separado da mulher e desempregado, ao ser interrogado pela polícia que acaba de prender sem razão aparente uma sua antiga professora, dribla o diálogo até ao paroxismo. Bernardo Carvalho não faz proselitismo. A questão gay versus homofóbico é apenas um entre vários temas em pauta. O uso da língua portuguesa também é trazido à colação. Espelho dos equívocos do multiculturalismo em versão internauta (como ilustrado pelos comentadores de blogues e sítios afins), Reprodução apoia-se num nonsense corrosivo como numa trave-mestra. Publicou a Quetzal. Quatro estrelas.